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Conectando pontos: acadêmicos, cineastas e adolescentes marginalizados brasileiros criam um curta para o MozFest

13.04.2022 | Autor: André Sarli

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Este texto fala das experiências do Doutorando André Cardozo Sarli conectando suas pesquisas e interesses acadêmicos com uma iniciativa de narração e produção de filmes dirigida por adolescentes, para produzir um pequeno filme sobre (des)conectividade. André é Brasileiro, e faz a sua pesquisa em Sociologia e Direitos da Criança pela Universidade de Genebra, Suíça. Sua temática atual está focada em como as adolescentes em situação de marginalização se apropriam das tecnologias de dataficação e, ao fazê-lo, como elas exercem seus direitos. Seus interesses estão nas áreas de desigualdades digitais, IA e Sociologia do Direito.

O resultado deste processo foi o curta “DesConectados”, selecionado como parte do Mozilla Festival 2022 (MozFest) na seção Arts & Media. O curta-metragem foi filmado por Pedro Dannemann e produzido por Gabriel, Emmanuel y Glauco. O vídeo apresenta os pontos de vista de três adolescentes que vivem em uma unidade de acolhimento no Rio de Janeiro, Brasil, sobre as tecnologias digitais e a internet, e sua relação dilemática com ela. O MozFest também apresentou uma Discussão Comunitária na qual André apresentou a lógica, o processo criativo e as reflexões sobre sua experiência. Neste texto, vamos discutir sobre a pesquisa acadêmica de André, como a ligação com o MozFest abriu novas oportunidades, e algumas lições aprendidas para aqueles interessados em adotar caminhos similares.

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[Soledad] Pra começar, fale-nos sobre seu PhD, o que motivou sua pesquisa e quais são suas principais descobertas até o momento?

[André] O meu doutorado é o reflexo de uma longa história, tentarei ser breve 👀. A ideia de fazer um PhD é o resultado de muita luta, mas o tema chegou um pouco tarde no processo, quando já tinha passado da metade. Meu tópico inicialmente focava em como a marginalização afeta o exercício dos direitos das crianças. Aí veio a pandemia. O problema é que minha tese era muito dependente da presença física no campo no Brasil, então tive que repensar tudo, e tive que fazer isso por muito tempo. Aproveitei a oportunidade para me perguntar, o que eu realmente gosto de pesquisa?, e como conectar isso com os resultados parciais, sem me desviar muito do meu projeto de tese.

Não sou apenas Doutorando, mas também Assistente de Pesquisa em um projeto da U. de Genebra, e como tal tenho que visitar muitos abrigos no Brasil para fazer entrevistas. Uma das coisas que chamou minha atenção, ou melhor, chamou a atenção dos adolescentes que eu estava entrevistando foi meu telefone celular. Não era um modelo top de linha, pelo contrário. Eles contavam histórias sobre discriminação, abuso, abandono, violência e violação de direitos, mas de repente o telefone celular tornou-se o centro das atenções e seus olhos brilhavam. Os jovens falavam de seus aplicativos favoritos, pediam para ver o que eu tinha, se eu jogava Free Fire, etc. Depois que saí, alguns deles conseguiram até encontrar minhas redes sociais, pediram pra me adicionar e checavam constantemente como eu estava. Achei isso impressionante porque me ajudou a verificar meus próprios preconceitos sobre o que é a vida para a juventude em um abrigo.

Minha família e eu tivemos nossa grande parcela de perrengues, vivendo em uma área periférica do Brasil quando eu era adolescente, entre outras coisas. Mas naquela época, por volta de 2000, minha mãe tinha certeza de que a internet seria o futuro, então ela fez de tudo para termos acesso e deixou outras coisas de lado. No fim funcionou porque meus irmãos e eu somos usuários assíduos. E ela estava certa, por que mudou nossa vida. Portanto, aquelas visitas aos abrigos e o entusiasmo dos adolescentes com a internet me tocaram profundamente.

Meu PhD agora combina todos esses elementos - como a marginalização/exclusão influencia a forma como os adolescentes que vivem em abrigos usam a internet, e qual é o resultado para seus direitos. Isto é algo pelo qual sou realmente apaixonado e, ao mesmo tempo, bastante desafiador. Como analisar, por exemplo, que um menino estava vivendo nas ruas há apenas alguns anos, mas ele é um grande fã do Naruto? Seu avatar e seu nome de perfil estão relacionados a essa animação japonesa. Isto é algo que pode parecer contrastante porque os brasileiros imaginam aquelas crianças apenas como vítimas ou criminosos, não Otakus (fãs do anime japonês). Eu senti uma conexão interessante porque também sou fã deste tipo de mídia, e sei como esta cultura é majoritariamente branca. Para ilustrar, uma notícia recente do Uol falou sobre como um negro vivendo em uma favela não se sente bem-vindo em eventos de animação japonesas.

Outra descoberta foi que muitas das crianças que vivem nos abrigos são influenciadas pelo ambiente de privação em que foram criadas e como isso se reflete em sua atividade online. Por exemplo, encontrei uma correlação com a influência do tráfico e do crime em geral. Isto é refletido no tipo de coisas que eles postam, as vezes fazendo até apologia, ou fazendo parte de uma subcultura relacionada a estes problemas. O que eu descobri é que isto certamente não pode ser ignorado. Hoje em dia falamos de vigilância digital (Zuboff, 2018), mas isto me deixou evidente outros tipos de vigilância de diferentes atores que não os grandes governos e a tecnologia, tais como, neste caso, o tráfico ou milícias.

[Soledad]: A gente se conheceu no evento Parábolas da Inteligência Artificial no/do Sul Global da Data & Society. De que maneira essa experiência influenciou sua motivação para desenvolver o curta DesConectados para o MozFest?

[André] As Parábolas da Inteligência Artificial no/do Sul Global da D & S abriram minha mente para os diferentes arranjos entre pesquisa, prática e comunicação, sendo uma delas as narrativas. Mas infelizmente, quando eu me registrei eu fui tímido e fi-lo apenas como um ouvinte ativo. Aí, pude ouvir muitas histórias extremamente interessantes sobre tecnologia e IA como vistas de uma perspectiva do Sul Global e encontrei tantas conexões com as histórias dos adolescentes com quem eu estava trabalhando. Eu disse a mim mesmo: Tenho que inscrever uma das minhas histórias da próxima vez.

Senti-me incrivelmente inspirado e motivado para trabalhar com narrativas em frentes diferentes. Tanto com a comunicação científica, quanto ao centrar parte da minha pesquisa nas histórias contadas pelos adolescentes. Uma terceira foi um pouco mais ambiciosa, que seria incentivar e facilitar que uma história dirigida pelos próprios jovens se tornasse viva através de um artefato cultural - uma mídia. Mas esta não seria uma atividade acadêmica, seria algo mais pessoal mesmo.

No mesmo evento da Data & Society, muita gente falava do MozFest. Havia tanta gente falando sobre como é um festival para entusiastas da tecnologia e como incentiva diferentes formatos de discussão, como a arte. Eu senti que era a ocasião perfeita para tentar trazer à tona aquela terceira ideia.

Quando falei com os adolescentes de um acolhimento, que tinham experiência de realizar curtas, sobre a minha intenção de intermediar que eles criassem um curta, eu estava bem duvidoso que o resultado viesse à lume. Havia tantos elementos que não dependiam de mim e precisavam estar ligados a diferentes pessoas no Brasil. Assim, decidi originalmente escolher um formato de sessão regular onde, caso o curta-metragem não fosse gravado a tempo, eu apresentaria apenas o roteiro e a gente discutiria. Felizmente, a equipe de wranglers acreditou na ideia e sugeriu mostrá-lo na seção de Arte do MozFest. No fim, felizmente o curta ficou pronto a tempo e eu pude apresentar ele no Festival!

[Soledad] Como você acha que a experiência do MozFest/DesConectados influenciará sua pesquisa?

[André] A participação no Mozfest e a interação com o cineasta que ajudou no processo e, especialmente, os adolescentes me levou a pensar em outros formatos que eu poderia usar para tornar minha pesquisa interessante ou para usar a narrativa, quiçá filmagens, como um dos núcleos de minha pesquisa. Isso me fez pensar, por exemplo, em transformar parte do meu doutorado em um filme, uma história em quadrinhos ou pedir aos adolescentes que produzissem algo material. No geral, me fez pensar como a Academia pode ser mais interessante. Se não for para meu doutorado, certamente integrarei artefatos multimídia e culturais para um Post Doc ou para meu futuro emprego.

Penso que em todos os campos da ciência, mas especialmente para os estudos da infância e juventude, é extremamente importante dar retorno aos jovens que ajudaram e fizeram parte da pesquisa. Estou interessado nessa via de comunicação científica, e quero alcançá-los e, em geral, às populações marginalizadas que não tem muito incentivo para trabalhar com a pesquisa.

[Soledad]: Quais foram os resultados mais interessantes da experiência dos Desconectados e como você os abordou no Mozfest?

[André] O curta DesConectados é o resultado de muitos elementos interessantes por si próprios. Um deles é que as crianças e adolescentes que vivem em abrigos são geralmente invisíveis e isso se traduz em instabilidade do orçamento, falta de equipamento adequado e poucas opções de lazer. Então, conhecer um abrigo que tem equipamentos de filmagem e uma iniciativa para a realização de filmes no meio da tendência de redução das despesas sociais e geralmente uma cultura discriminatória contra essas crianças é um achado por si. O segundo foi sobre o processo de roteirização. Eu apresentei uma ideia aos adolescentes que era mais parecida com o que estou fazendo para minha pesquisa, mas eu não tinha intenção de influenciar ou direcionar eles. Quis deixá-los livres. Eu esperava que eles fizessem algo relacionado às suas experiências on-line e, para minha surpresa, eles o abordaram de uma forma inesperada: experiências de desconexão. Eles produziram um filme sobre como estamos superconectados e esquecendo o “mundo real”. Fiquei muito contente com o resultado porque não tinha pensado sobre esta dimensão de “recusa” quando estava me organizando minha pesquisa.

[Soledad] Quais são as principais recomendações aos acadêmicos e estudantes interessados em trabalhar com crianças e utilizar métodos alternativos de pesquisa e prática

[André] Antes de mais nada, pode parecer meio clichê falar isso, mas a gente tem que pensar fora da caixa. Nas Universidades e Trabalho Social, estamos acostumados a trabalhar e pensar de uma certa maneira, às vezes mononuclear, então é interessante nos permitir aventurar em diferentes experiências, como eventos de narrativa ou festivais como o Mozfest.

A segunda e ainda mais importante é, quando se trabalha com crianças e adolescentes, devemos respeitar e ouvir suas opiniões. Do contrário, a gente significa que estamos as usando pros fins da pesquisa. Precisamos deixá-los livres para algumas escolhas. Quando fiz isso, fiquei muito feliz que eles distorceram minha ideia original em uma mensagem diferente que eles queriam passar. No final, precisamos facilitar, não direcionar.

Finalmente, precisamos levar em consideração o melhor interesse das crianças e dos adolescentes, que está na constituição brasileira, em todo o processo. Elas precisam ser consultadas o tempo todo e nós precisamos estar cientes dos traumas e experiências a que foram submetidas. Especialmente para as crianças marginalizadas, que é o caso da minha sessão, muitas vezes tocamos em memórias indesejáveis e outras coisas sobre as quais elas não querem falar. Portanto, mais do que seguir os padrões básicos de ética e ter o consentimento por escrito, é importante consultar também as pessoas que estão familiarizadas com eles. Tive sorte que o cineasta está familiarizado com elas e também conhecia e consultei um membro do pessoal do abrigo.

[Soledad] Muito obrigado, André, por compartilhar sua experiência!


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